quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Monsanto


Quando se casa com alguém não se casa apenas com a pessoa indivíduo. Casa-se com a familia, com os amigos, com os feitios, com as lembranças, com os sítios. Ao casar-me com o meu  marido passei a ser filha de Monsanto,  a aldeia mais portuguesa de Portugal. Vim cá a primeira vez no fim de 2009 quando não éramos sequer namorados. Tinha sido um ano atípico e Monsanto pareceu-me logo um tónico de juventude. A samarra, de quando o meu agora marido tinha 14 anos, assentava-me como uma luva e andava toda contente, eu, a samarra, e os chapéus que tinha roubado ao meu pai por cima do meu longo cabelo loiro por Monsanto. Voltei já oficialmente. A Adosinda, empregada da família desde que tinha 12 anos e falecida este Setembro, engraçou comigo e tratava-me como uma princesa. Quando os meus irmãos e sobrinhos cá vieram numa passagem de ano animada, o tratamento foi o mesmo. E desde então já cá estivemos em vários Verões, na altura do Boom Festival, que é a uns quilómetros daqui, no carnaval onde chocámos as velhinhas com as nossas danças mais entusiasmadas, no início do Outono quando uma lareira é remédio para todos os males, nos piqueniques de família onde pude contar com o companheirismo das minhas 3 cunhadas. Conheci primos de Monsanto, tantos que é impossível lembrar-me do nome de todos. Mas lembro-me deles, a discutir alegremente com o meu pai no meu casamento, porque é que o Minho era o melhor sitio de Portugal. 
Monsanto é dos velhos que por aqui vivem, é dos boomers que de 2 em 2 anos cá vêm parar, dos turistas que alegremente suam a trepar pedra e dos primos, que têm cá casa e cá vêm carregar baterias. Monsanto não é, mas deveria ser património da humanidade e acima de tudo,  e vamos lá falar a sério,  nada mais interessa. É um dos meus sítios no mundo. Se já me leram, já ouviram falar de Altura, o sítio no algarve onde passo férias desde os 2 anos. Já me leram dizer: Altura é mais alto. Pelo cheiro a flor de laranjeira, pela areia, pelo mar quente. Monsanto é literalmente mais alto, rivaliza com as serras próximas, e subir ao castelo, digo-vos. Dá cabo de mim! 
Às vezes digo ao meu marido: vimos para aqui, para esta casa construída em cima de duas enormes rochas, e aqui viveremos. Tu tiras sisos e eu escrevo livros. Porque Monsanto tem isso. É inspirador. Não há praia, piscina ou espreguiçadeiras, quem vem,  vem simplesmente estar.  Ao ritmo que se trepa o granito, a inspiração entra quando o dióxido de carbono sai. E aqui vim festejar os meus 32 anos, porque gosto da paridade, porque não quero mais nenhum 31, porque quero sentir-me inspirada, renovada e reforçada. Para o que der e vier. Nasce-se e morre-se em Monsanto, mas acima de tudo vive-se. Vive-se com mais força.
Que Monsanto nunca saia de mim ainda que eu saia de Monsanto. De carro chego mais alto, mas com o meu chapéu e a minha samarra sinto-me a planar. E isto não vem com comunhão de bens ou separação dos mesmos. Isto aloja-se no coração,  tal como a Adosinnda, e não há quem tire.

Dezembro de 2015

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Anjo Mau


Quando eu era miúda tinha a mania que era poeta. Escrevia muito em prosa, mas era em verso que me expressava melhor desde que tinha uns 7 anos ou seja basicamente desde que conseguia dominar minimamente a língua Portuguesa. Muitas vezes as minhas composições nos testes de Português eram em poema, porque a minha mente organizava-se bem nesses termos e os professores não se importavam. (Uma queda gigante para o dramatismo e a fatalidade, claro vem dessa altura). Às vezes estava a andar de bicicleta e um poema aparecia na minha cabeça, ia a repeti-lo mentalmente até chegar a casa e podê-lo registar. Em casa também puxavam por mim e pediam-me poemas, às vezes à hora de jantar, tipo desafio, "ora tens até à sobremesa para fazer poema sobre tema X em soneto, nada de papéis". E eu fazia. Hoje fico feliz que me tenham feito esse tipo de desafios e dado essa atenção na fase difícil que é  a pré e a adolescência. Ainda hoje, bem menos, escrevo poesia.
Hoje a rever tralhas e mais tralhas das mudanças encontrei uns diários que são absolutamente deliciosos. Começam em 1998 (tenho mais antigos num esconderijo secreto na casa do meu pai) e tenho inclusive um diário de sonhos que me leva a pensar o que eu já desconfiava: sou mais esperta a dormir do que acordada. Mas dentro da poesia há um poema nos meus 16 anos que gostava de partilhar com vocês. (Encontrei também o que veio anos mais tarde dar nome a este blog: Residência Fixa nas Nuvens). É infantil quanto baste, em rima como eu gostava, e consigo aplicá-lo no dia de hoje a algumas pessoas na minha vida. Há coisas que parecem que não mudam mesmo. Aqui vai:

Anjo Mau

Desde criança que sonhava
Com criaturas em perfeição 
Sempre soube que as amava
Mesmo antes de as ver longe do chão. 

Agora uma partiu-me o coração 
Nela deixei de acreditar,
Sei que não merece o perdão 
Que o meu ser insiste em dar.

A essa criatura entreguei:
Corpo, peito e alma.
Mas nela nem sequer abalei,
Um pouco da sua calma.

Desculpa, tantas vezes te chamei
Pelo nome que não é o teu.
Perdoa-me se me enganei,
Não passou de um erro meu.

Anjo Mau te chamei
Vezes cuja conta não tem fim.
Esquece o anjo, agora bem sei,
És apenas mau, e não é só para mim.

10 de Outubro de 2001
Young (16) Raquel